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A Hora do Mal | James, a voz do invisível e a desmistificação de moradores de rua no cinema

Por Victoria Hope

Após um mês de estreia do terror aclamado de Zach Cregger, "A Hora do Mal" (Weapons), diversos personagens ainda estão na mente do público, seja por cenas marcantes ou por performances que definitivamente marcaram o gênero de terror contemporâneo e um desses personagens é James, interpretado de forma brilhante (e hilária) por Austin Abrams (Euphoria).

Como muitos personagens representados na mídia, James (Abrams) é uma pessoa em situação de rua e seu personagem, mesmo que secundário, causa impacto na história e na vida de todos os personagens envolvidos. No cinema, pessoas em situação de rua costumam ser apenas figurantes, que se não estão em segundo plano, estão ali apenas como 'cenário' para representar a 'possível decadência' da sociedade, então não é de causar espanto a quantidade de esteriótipos reforçados pela mídia, que pouco se importa com essa camada da população.

São muitos os motivos que levam pessoas a se tornarem pessoas em situação de rua, sejam fatores externos como perda de bens materiais, perda de familiares ou internos, como questões de saúde física e saúde mental, incluindo abusos físicos, depressão, Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), e abuso de substâncias.


James / Foto: Warner Bros. Pictures

Na ficção o mesmo acontece quando o público é apresentado ao desespero que a pobreza pode causar na vida de um indivíduo ou de suas famílias. Em uma sociedade desigual, pessoas são forçadas a seguir caminhos que jamais pensariam; tudo em troca de uma vida com o mínimo de dignidade, mas por quê a sociedade, enquanto expectadora, se sensibiliza tanto com casos fictícios de pobreza, enquanto vira as costas para essas pessoas na vida real?

Em "A Hora do Mal", James é um jovem morador de rua com dependência de substâncias químicas e que é capaz de qualquer coisa em troca de dinheiro para sustentar seu vício. O público pouco sabe sobre esse personagem além de o fato de que ele tem um possível irmão, de que deve dinheiro para a própria mãe e que atualmente mora em uma barraca no meio da floresta.

Em nenhum momento Creggers tenta transformar esse personagem em um pôster de moralidade; muito pelo contrário, James poderia ser apenas mais um conto moral de toda a tragédia que permeia as vidas de pessoas em situação de rua, mas aqui, o personagem é o alívio cômico puramente por ser engraçado e é aí que está o grande trunfo do diretor, pois o fato de James estar nessa situação, não é a piada em si; o humor vem justamente das falas do personagem, que "apesar de ser morador de rua", é extremamente educado e polido com as outras pessoas, ao mesmo tempo em que tem várias referências de cultura pop na manga. 


James / Foto: Warner Bros. Pictures UK

James não é violento, aliás, é o oposto, pois ele acaba sendo vítima de todas as circustâncias possíveis e de inúmeras violências, incluindo sobrenaturais, que fogem de seu alcance. O público é confrontado com a tragédia do personagem em momentos pontuais, como por exemplo, quando percebe-se que ele é o único daquele bairro que precisa enfrentar a chuva, por não ter um teto sobre sua cabeça, enquanto todas as outras famílias moram em excelentes casas repletas de câmeras no subúrbio bem abastado.

A humanização de James é um dos pontos mais altos do filme, pois ele não é pintado como alguém bom ou mal; ele é pintado como um ser humano, com necessidades básicas, possivelmente com sonhos, ambições e que querendo ou não, acaba sendo involuntariamente o salvador daquelas crianças; crianças essas que são alegoria para diversos temas e que inclusive, se justapõe com James, já que o personagem representa a realidade do que negligência e abuso podem causar a uma pessoa.

Não sabemos das circunstâncias que o levaram para as ruas, mas sabemos que as pessoas do bairro, incluindo Justine (Julia Garner), Paul (Alden Ehrenreich), Archer (Josh Brolin), Marcus (Benedict Wong) e todos os outros adultos da trama, pouco se importam com o bem estar desse morador de rua. É como se ele fosse invisível aos olhos de todos, apenas um 'incômodo'; alguém que está ali apenas para ser ignorado no turbilhão de coisas que estão acontecendo na vida de todos daquele bairro.


Justine / Foto: Warner Bros. Pictures UK

Existe algum privilégio para James? Quais são as histórias não contadas?

É impossível falar sobre a representação de pessoas em situação de rua nos cinemas, principalmente no gênero de terror, sem falar das questões de raça. Num recorte apontado durante a mesa redonda de 2021 intitulada "Media, Precarity and The Home", do portal Mediapolis, grande parte dos personagens em situação de rua nos cinemas, principalmente de Hollywood, são representados por atores brancos.

De início, a informação não parece dizer muito, porém revela que até mesmo no entretenimento, existe um apagamento ainda maior de raças não-brancas, principalmente em casos de personagens como James, que talvez despertem mais empatia do público. 

O próprio esteriótipo de Hollywood do personagem "morador de rua malandro", tem suas origens em algo ainda mais antigo, segundo estudos de Michelle Granshaw apresentados no livro "Inventing the Tramp: The Early Comic on Variety Stage," Theatre History Studies (2019). As origens do ato do morador de rua 'carismático mas preguiçoso' foram baseados nas peças de teatro de 1870 intituladas Vaudeville, onde os atores utilizavam blackface, ato da pessoa branca pintar a pele para rechaçar negros ou estavam trajados de 'irlandeses esteriotipados'; lembrando que na época, os imigrantes irlandeses e a comunidade negra já possuiam ligação, como mostrado em filmes como "Pecadores",


Beggars lof Life (1928) / Foto: Paramount Pictures)

No cinema clássico dos Estados Unidos, moradores de rua negros eram raramente representados e quando eram, como no caso do filme 'Beggars for Life' de William Wellman (1928), onde o personagem negro existia apenas como um suporte para o personagem branco. Apenas filmes como "A Procura da Felicidade", de Will Smith, são a exceção, onde o personagem negro morador de rua, é protagonista e visto com a mesma empatia que outras dezenas e milhares de personagens em situação de rua ao longo dos anos.

O principal ponto aqui não é a necessidade de representar a comunidade negra como uma classe sem condições apropriadas de vida, mas sim apontar como essa classe, que na vida real, é majoritariamente negra e ao mesmo tempo, segue invisível até mesmo na mídia, pois não são vistos como 'a vítima ideal', se comparados com James. 

No mundo real, só no Brasil, de acordo com o levantamento da Agência Brasil, 69% das pessoas em situação de rua que estão registradas no CadÚnico hoje são negras e quando a realidade é transferida para os Estados Unidos, o número também assusta, pois segundo relatório oficial do Governo Americano, em 2024, os negros representavam 32% das pessoas em situação de rua nos Estados Unidos, apesar de serem 12% da população geral do país.


James / Foto: Warner Bros. Pictures Brasil

A grande questão é que a não representação dessa camada na mídia, definitivamente causa um apagamento ainda maior da comunidade que se torna ainda mais invisível através desse apagamento. A grande questão que fica no ar é: Será que o público teria tanta empatia por James caso ele não fosse um rapaz jovem, de pele branca, cabelos loiros e olhos claros? 

Com o recorte de raça deixado para segundo plano e voltando ao filme, James consegue um feito que há muito tempo não era visto nas telas, uma humanização completa desse personagem que se torna muito mais do que 'apenas parte da paisagem urbana'. É uma das raras vezes em que o cinema contemporâneo de horror, principalmente após a demonização de pessoas em situação de rua como em filmes de Ari Aster (Beau Tem Medo e Eddington), traz um personagem em situação de rua com um olhar mais empático e humanizado.

A única pena é que o personagem não escapa de seu fim trágico, que é tão irônico e cruel quanto a vida real, afinal, involutariavelmente, quem o leva para sua ruína é o próprio policial, que outrora, também era seu inimigo. James infelizmente não escapa do fim trágico, mas será que existem finais felizes em "A Hora do Mal"? A resposta é não. Ninguém sai feliz dali e a conclusão traz um sentimento bem agridoce, mas esse é o verdadeiro significado de horror.  

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