Por Victoria Hope
Quando a realidade é mais assustadora do que a fantasia e ficção, séries como Lovecraft Country se mostram necessárias e essenciais para entender o que aconteceu no passado e o tocar na ferida de questões essenciais para a sobrevivência de uma comunidade inteira.
Baseada na obra de Matt Ruff, Lovecraft Country é a adaptação de um best seller de literatura que subverte completamente a visão de H.P Lovecraft, o 'pai' do terror cósmico, conhecido por criar alguns dos livros de horror mais consumidos e premiados até hoje.
Apesar da criatividade, H.P Lovecraft era ferrenho racista e xenofóbico, mas diferente do que muitos pensam, no caso do autor, a tarefa de separar sua obra de sua visão pessoal se torna impossível, tendo em vista que toda mitologia criada em seus livros, é baseada em estereótipos raciais.
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Retrato de H.P Lovecraft / Reprodução
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Até mesmo para sua época, em seu círculo de amigos, Lovecraft, não era visto com bons olhos por suas atitudes preconceituosas, mas mesmo assim, seus livros nunca foram retirados das prateleiras e o autor apenas ganhou a fama e prestígio após sua morte.
Quando o autor contemporâneo Matt Ruff, que também é um escritor branco, notou a oportunidade de subverter as visões de H.P Lovecraft e escancarar as visões deturpadas do autor, nasceu Lovecraft Country, que contava a história de um jovem negro chamado Atticus Freeman e suas aventuras ao lado de sua intrigante namorada Letitia e seu sábio Tio George em uma região Lovecraftiana, baseada no universo de Lovecraft.
A série da HBO Max segue a mesma premissa dos livros, porém, com acréscimo de questões raciais ainda mais relevantes e eventos históricos da vida real que aconteceram nos Estados Unidos. Das Sundown Towns ao Massacre de Tulsa e o trabalho de artistas como do fotógrafo e cineasta Gordon Parks, Lovecraft Country resgata a memória, convenientemente apagada, de como era a vida da comunidade negra nos EUA nas décadas de 50 a 60.
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Leti e Tio George / HBO Max
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Com direção de Misha Green e produção de Jordan Peele, a série acompanha Atticus e sua família, que partem para uma viagem pela América a fim de encontrar a localização de Montrose Freeman, pai de Atticus, mas no caminho, se deparam com criaturas misteriosas, sociedades secretas e pessoas tão piores quanto qualquer criatura que eles possam vir a encontrar.
Confrontados pela população americana branca e racista, o protagonista e sua família tentam sobreviver no país que tenta a todo segundo acabar com suas vidas. A série mostra de forma poderosa e nada sutil, os efeitos das leis de Jim Crow, conhecidas como leis de segregação que continuavam em vigor na América, principalmente durante a década de 50 e que até hoje causam consequências para a comunidade negra.
Lovecraft Country triunfa ao trazer à tona casos de racismo e segregação da vida real que foram apagados da história americana, assim como evidências de diversos crimes contra a comunidade negra, que apenas há poucos anos atrás foram desvendados.
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Dora Freeman, falecida mãe de Atticus/ HBO Max
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Mas nem apenas da análise sobre o racismo estrutural respira a série, pois ela também explora os grandes feitos da comunidade negra, principalmente seu pioneirismo, que também foi apagado pela história, mas aos poucos vem sendo resgatados através de filmes e séries como Watchmen e Lovecraft Country.
Além de homenagear nomes importantíssimos como Sister Rosetta Tharpe, a 'mãe' do Rock' n' Roll e Jack Roosevelt "Jackie" Robinson, que foi o primeiro jogador de beisebol negro da história, a série também, por meio de símbolos, também traz referências à outras figuras como o criador do Green Book, que na série é representado pelo Tio George, o escritor francês Alexandre Dumas, Prince Hall Freemasons, que foi uma sociedade secreta negra da vida real e a grande poetisa, Sonia Sanchez.
As homenagens não ficam apenas no passado, como também abordam presente e futuro, trazendo uma bela visão de afrofuturismo através da personagem Hippolyta Freeman. Vale lembrar que no afrofuturismo, mais do que representar um movimento artístico, ele aborda questões sociais e culturais combinando elementos da ficção científica com história e fantasia para representar dilemas da comunidade negra e questionar eventos históricos, trazendo a figura do negro como um viajante pelo tempo e espaço.
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C'Est, personagem inspirada na cantora Elza Soares / HBO Max |
Com tecnologia avançada ao seu lado, como visto no sétimo episódio da temporada, "I Am", o afrofuturismo explorado em Lovecraft Country busca a ressignificação do papel dos negros, principalmente da mulher negra, na sociedade, na ciência e na evolução.
Lovecraft Country também aborda, mesmo que de forma rápida outras questões relacionadas à guerra, principalmente representando outros povos que sofreram violência por parte dos Estados Unidos, incluindo indígenas norte americanos e coreanos durante a guerra.
Em "Meet me In Daegu', o sexto e um dos mais importantes episódios da primeira temporada, acompanhamos a guerra entre os Estados Unidos e Coréia pelos olhos de Ji-Ah, uma jovem estudante coreana de enfermagem que sonha em conhecer a América e as celebridades de Hollywood.
De forma sensível, o episódio não apenas resgata a memória da guerra pela visão de quem teve parte de seu país destruído na guerra, como também explora conflitos políticos atrelados à intrigantes criaturas da mitologia coreana, essencialmente deixando nítido como a representação de minorias como 'monstros', é figura presente nos livros de Lovecraft e no imaginário norte americano.
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"Meet Me in Daegu' / Lovecraft Country
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Apesar da importância de demonstrar os erros do passado, a violência da trama pode afastar públicos mais sensíveis à temática sangrenta, porém, para fãs de horror, principalmente horror cósmico, é um prato cheio de referências de cultura pop e cenários históricos muito importantes.
Não é uma série fácil de ser digerida, principalmente pela forma que narra os acontecimentos da vida real , mas Lovecraft Country se mostra extremamente essencial em tempos de Black Lives Matter e protestos que tem acontecido nos últimos meses.
Séries como Lovecraft Country e Watchmen desmontram a necessidade de produções que não apenas mostrem a dor da comunidade negra, mas que também tragam justiça à memória de todos que se foram e daqueles que ainda lutam por um lugar ao sol. As duas séries podem ser assistidas na HBO e HBO Max, que chega em breve ao Brasil.
Nota: 10/10