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'Queer Coding' e a verdade sobre vilões LGBT no entretenimento



Por Victoria Hope

Já se perguntou o motivo pelo qual você ama vilões e muitas vezes consegue se identificar mais com eles do que com os heróis das tramas? Se você for LGBT, com certeza se identifica ainda mais, porém existe um motivo real por trás disso e vamos falar dele por aqui.

Existem centenas de artigos, matérias e editoriais inteiros falando sobre o problema de tantos vilões, principalmente de mídias infantis como animações, serem sempre retratados com 'traços gays', numa tradução livre do termo. 

Por um lado, é triste pensar que muitas crianças LGBT se veem nesses vilões que foram escritos justamente como chacota, como formas de 'envergonhar' todo o grupo, afinal, os vilões representam o mal e muitas vezes isso pode acabar associando a imagem de LGBTs com um desejo pelo perigo ou por burlar a lei. 

Isso tudo é verdade, mas tem um lado que talvez muitos não saibam. Grande parte dos vilões 'queer coded' de estúdios como a Disney, por exemplo, eram desenhados e escritos por artistas LGBT dentro da indústria, que achavam no vilão, a única forma de inserir uma pequena 'representatividade' ali. 

Úrsula de 'Pequena Sereia' / Disney

Foi o caso de vilões como a icônica Úrsula de 'A Pequena Sereia'. A personagem foi desenhada em homenagem à drag queen Divine, que muito antes do filme, era uma grande amiga de Howard Ashman, que fazia parte da equipe de produção do filme e escreveu as músicas de toda a animação, além de Rob Minkoff, que também conhecia a performer da cena noturna LGBT.

Essa foi uma forma de ambos inserirem uma figura divertida e muito importante para o grupo, sem que isso ficasse nítido para a audiência leiga. Naquela época, quem era adulto e LGBT com certeza reconheceu a figura, mas as crianças e seus pais provavelmente não reconheceram.

Muitos sabem que os estúdios queriam o efeito contrário. Na trama, personagens como Scar, Úrsula, Hades entre muitos outros, estavam ali para representar o mal, a traição, 'coisas' que deveríamos 'abominar', mas o 'problema' é que não foi isso o que aconteceu.


Equipe Rocket de Pokemon / Cartoon Network
O que era pra ser um ataque à indivíduos da comunidade LGBT, teve efeito contrário, pois rapidamente esses vilões se tornaram um 'espelho'. Toda estética e estilo de vida desses personagens evocava uma aura de poder, unido à roupas espalhafatosas e personalidades fortes, onde esses antagonistas ignoravam as regras ditadas pela sociedade.

Ser um vilão, significava rejeitar completamente todos os dogmas e conceitos daquela sociedade para viver à sua maneira e isso é algo que todos os vilões pregavam, logo, o público marginalizado, desde a infância, passou a se identificar com esse conceito.

Em um dos nossos artigos, já comentamos a importância de crianças se verem na mídia e mesmo que vilões LGBT não sejam a representatividade ideal, é impossível dizer que essas crianças não se sentem representadas e 'empoderadas' por esses personagens.


Catra e Adora de 'She-Ra' / Netflix 
Ao invés do público rejeitar esses vilões, eles os abraçaram, se sentiram acolhidos por essa representatividade, por mais 'negativa' que ela fosse. A maioria dos vilões de animação e filmes não possuem características que possa os redimir, mas esse é o ponto, um vilão não precisa ter um arco de redenção e é nessa hora que surge a importância da separação entre vida real e ficção. 

Catra, por exemplo, na nova versão de She-Ra, continua sendo a vilã e mesmo que nós tenhamos certa 'empatia' por ela, em nenhum momento a animação protege a personagem das coisas erradas que ela faz, muito pelo contrário. 

Claro que temos um primeiro momento onde ainda vemos que ambas Catra e She-Ra nutriam uma amizade a conforme a trama engrossa, notamos que Catra sente algo além de amizade pela protagonista, mas esse amor logo se torna 'raiva' e por ser rejeitada desde nova, a vilã tenta de todas as formas agradar os vilões para 'ter um lugar ao sol'. 


Loki, Ozymandias e Mística / Marvel | DC Comics | Marvel

Nem sempre vilões queer-coded eram LGBTs, mas alguns eram abertamente não-héteros nos quadrinhos, por exemplo, e muita gente cresceu lendo e se identificando com esses personagens, como Loki de Thor, o Ozymandias de Watchmen e a própria Mistica de X-Men (além de uma série de outros personagens da saga). 

É importante lembrar que nem todos amavam esses personagens e grande parte desses antagonstas possuía requintes de crueldade e é aqui onde mora o perigo de colocar todos os vilões ou os principais vilões e anti-heróis como LBGTS. 

Quando essa 'demonização' se torna um padrão para a representatividade na mídia, sem que haja uma representação LGBT positiva e genuinamente 'heróica', a tarefa de fazer com que pessoas não LGBTs simpatizem mais com os personagens e pessoas assim, se torna bem mais difícil. 

Coringas / DC Comics 
Quando falamos em queer-coding e quadrinhos, é impossível não falar dele, o Coringa, um dos vilões mais amados e simultaneamente odiados pelos fãs de HQs e cinema. Um dos personagens mais complicados e assustadores na história da DC, tem uma origem que é um mistério, mas isso não faz dele menos 'icônico'.

Vale lembrar que icônico aqui é usado como forma de dizer que ele se tornou um ícone para a mídia, o que não deixa de ser verdade. Assim como seu arqui-inimigo, Batman, Coringa teve diversas interpretações no cinema e na televisão, ganhando até seu próprio filme de origem ano passado.

O primeiro ator a interpretar o Coringa, foi Cesar Romero, um ator cubano e gay, que em sua juventude foi considerado um verdadeiro galã. A risada icônica que conhecemos partiu dele, assim como a atitude do personagem.

Cezar Romero  na juventude / Cezar na série clássica de Batman em 1966

Em um trecho de uma rara e antiga entrevista, há uma fala do ator (Cesar) dizendo que interpretar Joker na primeira adaptação dos quadrinhos em 1966 foi algo muito importante, pois ele finalmente poderia agir de forma mais livre e 'raunchy' (termo usado para dizer atrevido (a). Confira o vídeo.

O Coringa dos quadrinhos sempre foi representado como uma figura espalhafatosa, dramática e exagerada; um vilão sempre era visto como apaixonado pelo arqui-inimigo Batman, porém essa paixão era doentia. 

Em nenhum momento dos quadrinhos ou das adaptações do personagem, as ações do Coringa foram redimidas, muito pelo contrário. Somos levados a amar e odiar o personagem ao mesmo tempo, assim como temê-lo por ser uma figura completamente imprevisível e fascinante. 

Joker / Warner Bros.

Para fechar essa análise, não poderia deixar de falar sobre o Coringa vencedor do Oscar em 2019, interpretado por Joaquin Phoenix. 'Mas Vicky, esse Coringa era hétero, ele perseguiu a menina'. Sim, ele fez todas essas coisas, mas se lembra do comecinho desse texto, onde comentamos que nem sempre vilões queer-coded eram LGBTs?

Em uma conversa com Charles Pullman, editor do I9 Gizmodo, falamos sobre o Coringa e sobre Cesar Romero, Heath Ledger e por fim, Joaquin Phoenix. Enquanto conversávamos, surgiu algo como 'Você também sentiu queer codes no novo filme do Coringa?'

Rimos inicialmente, mas depois paramos para analisar todo o filme. Olhando pelo lado de fora, Arthur era um stalker, ele tinha 'fantasias' com aquela mulher desconhecida, mas ao mesmo tempo, de forma extremamente subjetiva, a trama (ou o próprio Joaquin), uniram a questão de saúde mental do personagem, junto com a seu comportamento violento e por fim, sua inabilidade em performar a masculinidade tradicional para criar essa 'persona'.

Joker / Warner Bros. 
Queer coding não é apenas sobre a sexualidade dos personagens, aliás, muitas vezes não é sobre isso, é sobre a performance, os gestos, trejeitos estereotipados que a sociedade heteronormativa vê dentro da comunidade LGBT (sem conhecê-la, vale ressaltar).

Em 'Coringa', acompanhamos a evolução de um rapaz fisicamente e emocionalmente fragilizado para um vilão que se empodera através das roupas e da maquiagem. Uma figura espalhafatosa que quer destruir as figuras de poder em questão (leia-se, pessoas ricas de Gotham). 

Notamos em algumas cenas do filme que Arthur se pegava admirando no espelho diversas vezes enquanto aplicava maquiagem; ele era delicado com a arte de se maquiar, diferente de seus colegas de trabalho que só passavam borrões na cara e e mal faziam a barba. 

Cenas deletadas de 'Coringa' / Warner Bros

Arthur tinha uma relação muito próxima à mãe, o que a mídia sempre representou como um sinal de queer-coding, assim como era mostrada a relação entre Norman Bates e sua mãe em 'Psycho'. Em um momento de 'Coringa' quando Arthur finalmente se despe da máscara convencional e se sente seguro, ele dança graciosamente, tal qual um bailarino.

Por fim, quando ele finalmente se 'empodera', Arthur passa a usar roupas berrantes, coloridas, que contrastam completamente com o visual cinza dos patriarcas Murray e Thomas Wayne. Ele se distancia visualmente de ambos os personagens, rejeitando aquele conceito ou 'dogma' da masculinidade e durante sua primeira entrevista, em um momento sua voz falha e ele passa a mostrar seu verdadeiro 'eu'. 

Joker não é gay ou bi, ou melhor dizendo, sua sexualidade é um enigma assim como sua origem desde sua primeira aparição nos quadrinhos, mas pensando em esteriótipos péssimos que sempre foram perpetuados pela mídia, temos uma figura com um pesado queer-code na mídia. 

É impossível se identificar com Joker... Agora, com Arthur Fleck? Talvez, principalmente por ele ser uma figura marginalizada.  Sim, nós podemos nos sentir assim também, mas já está mais do que na hora da indústria incluir representatividade positiva ao invés de adicionar apenas vilões nesse grupo.

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